quarta-feira, 8 de janeiro de 2014


INTIMIDADES  

 

O DIFÍCIL É DEIXAR DE SER “EU” PARA SER “NÓS”.




            Está em cartaz, no Teatro Gláucio Gil, até o final de janeiro, de sábado a 2ª feira, às 20h, o espetáculo INTIMIDES, texto de GUSTAVO MACHADO, com direção de BRUCE GOMLEVSKY, interpretado por ROBERTA ALONSO, idealizadora do projeto, e JOAQUIM LOPES.


            O espetáculo, que já fez excelente carreira em São Paulo, no Teatro Eva Herz, é o terceiro texto do também ator GUSTAVO MACHADO, que se propõe a levar para o palco o embate entre um casal, junto há nove anos, numa discussão de relacionamento, durante a qual revelam o que de mais íntimo existe dentro de cada um, em relação ao outro.  Nove anos de troca, renúncia, ciúme, desejo, saudade, disputa, coragem, covardia, camaradagem, culpa, saudade, aconchego, ternura, desassossego, paixão e solidão.


            A peça questiona como um casal pode partir de um ponto de absoluta intimidade entre duas pessoas para um final feliz.
 

            O título da peça não poderia ter sido melhor escolhido, já que a etimologia do vocábulo “intimidade” está no Latim “intimus” (íntimo), que significa “ir mais profundo, o mais afastado; superlativo de “interus”, (interior), pertencente às regiões mais profundas do ser”.



Embora não tenha sido veiculado na mídia, a peça tem um outro título, que bem pode sintetizar o que se vê em cena: A ESTONTEANTE E ETERNA PELEJA ENTRE A MULHER DIÁFANA E O HOMEM INDOLENTE.


            Em cena, os dois personagens são anônimos (Homem e Mulher), uma vez que ali estão representando qualquer pessoa da plateia.  Muitos espectadores devem atingir uma identificação, total ou parcial, com o homem ou com a mulher em cena.


            Da forma mais cruel e de peito aberto, os dois vão recordando os momentos de individualidade de cada um (Quando teriam sido mais felizes?) e desfilando uma série de acusações pessoais, mútuas, uma "lavagem de roupa suja", num tom menos de cobrança e mais de vingança, criando um clima de tensão e desconforto para o público, que nem consegue tomar a parte de algum dos contendores, já que fica, praticamente, impossível dizer quem teria razão e, consequentemente, sairia vencedor do “octógono”, para usar uma palavra “da moda”.  E isso é facilmente explicável: a cada investida de um dos lutadores, corresponde um contragolpe tão “justo” quanto aquele que o gerou.  Vai ficando, cada vez mais claro, ao longo das investidas, que todos somos humanos e, portanto, passíveis de falhas, de erros, de injustiças contra o outro, de equívocos afetivos.
 

            No programa-cartaz da peça, a atriz ROBERTA ALONSO diz que “A intimidade é a coisa mais legal que tem.  Pode parecer que não, mas é.  É na intimidade que você se revela, sem medo e sem pudor.  Só a intimidade é capaz de fazer, em pouco tempo, nascer relações tão ricas que nos causam um turbilhão de emoções e sentimentos, que nos deixam expostos, sim, mas expostos pra vida, pro amor.”


            Eu diria que as palavras de ROBERTA são perfeitamente ajustáveis ao brilhante texto de GUSTAVO.  Numa situação de intimidade, o indivíduo é capaz de deixar transparecer a sua verdadeira identidade, a comunhão entre o que os outros pensam de mim e o que eu realmente sou, com predominância desta última situação.  A pessoa cresce, cria forças, para despejar, sobre o outro, toda sorte de inconformismo por uma expectativa não concretizada.  A idealização do amor cede lugar ao realismo "cruel" da vida a dois.
 

Conheci a auxiliar de uma dentista, que vivia reclamando do marido (a auxiliar), até que, um dia, a dentista teve a oportunidade de conhecer o homem e travar uma boa conversa com ele.  Dias depois, dirigiu-se à auxiliar, dizendo-lhe não entender por que aquela reclamava tanto do marido, que lhe parecera ser um bom homem.  Imediatamente, veio a réplica: “A senhora acha, doutora?  Então vai comer um quilo de sal com ele!”.


            “Comer um quilo de sal” na companhia de alguém deve ser o tempo suficiente para se descobrir que o príncipe era um sapo disfarçado ou que a princesa era uma bruxa sob encanto.
Cabo-de-guerra ou, simplesmente, GUERRA.


            Já o ator JOAQUIM LOPES, no já mencionado programa, vem com “Dizem que a intimidade estraga tudo.  Mas como viver sem intimidade?  Intimidade com você mesmo, com parentes, amigos, com uma parceira ou parceiro.  É através dela que mostramos ou tentamos mostrar quem somos de verdade.  E a verdade, às vezes, é dura, e muitos de nós entramos num ciclo de negação.  No momento em que deixamos que alguém olhe a nossa alma, mostramos nossa essência.  Às vezes, mostramos amor; às vezes, ciúme; às vezes, culpa...”.


            O que pode ser estragado pela intimidade?  A mentira, o faz-de-conta, o me-engana-que-eu-gosto, o “statu quo” forjado de quando se vivia o encantamento do amor, que temos de saber que não é cor de rosa vinte e quatro horas por dia? 


            O homem, sendo um ser social e gregário, não pode viver sozinho e, por isso mesmo, vê-se na contingência de dividir sua intimidade com outrem, permitindo a este explorar o seu ego.  Daí,  advêm os conflitos, tão bem abordados no texto da peça.


GUSTAVO MACHADO, também no programa da peça, reproduz parte de um diálogo marcante no seu texto: “‘Humor é amor com H’, diz o Homem.  Ao que a Mulher responde: ‘Amor é simplesmente estar por perto’.  Ao que ele responde, perguntando: ‘Quão perto’?  Ela: ‘Perto o suficiente’.  Ele: ‘Suficiente pra quê?'  E assim vão.”  Ou seja, um questionamento leva a outro e parece que nunca vai ter fim.


            Se “viver é uma arte”, que “arte maior” seria viver a dois, dividindo espaços e intimidades?  E é sempre bom lembrar que, só nas novelas de TV, as pessoas acordam maquiadas e penteadas, as mulheres sempre usando cílios postiços e ninguém desperta com mau hálito.  Abrir mão da individualidade por uma parceria nem sempre compartilhada?


            O espetáculo em questão merece ser visto por quem admira um bom TEATRO, graças ao grande achado, que é o texto, à competentíssima direção de BRUCE e às atuações de ROBERTA e JOAQUIM.  Estes se entregam, de corpo e alma ao trabalho de representar.  Nem sei se mais de corpo do que de alma.  Há cenas de uma quase violência física, guardadas as devidas proporções, em função de técnicas que devem ter sido muito bem treinadas pelos dois (ROBERTA é praticante de algumas artes marciais), que hipnotizam e tensionam  a plateia.  É quase impossível piscar durante os setenta minutos de duração da peça.  Há um desfile de golpes marciais, tapas, socos e outras formas de “carinho”, que colaboram para a criação do ambiente e a exploração do assunto em discussão.  Excelentes os trabalhos dos dois atores.  São dois competentíssimos profissionais.


Sob domínio.  Até quando?


            A direção de BRUCE é muito boa.  Ousada e, ao mesmo tempo, simples, sem grandes sofisticações.  Por conta da excelência do texto, creio que seu trabalho foi “apenas” (detalhe para as aspas) levar os atores a atingir o nível de “intimidade” necessário para fazer com que a “verdade” imperasse no palco.  Dar o tom que o texto pedia.  Como, na ficha técnica do espetáculo, não consta nome de um profissional responsável pela direção de movimento, se não tiver havido uma lamentável omissão, acredito que toda a marcação tenha sido planejada e executada pelo próprio BRUCE, o que torna seu trabalho de direção mais digno de elogios.


            A cenografia ficou a cargo do grande NELLO MARRESE, que optou pela simplicidade e pela plasticidade (talvez sugeridas pelo autor e/ou diretor do espetáculo).  As cenas se dão num praticável, como se fora um ringue, sem cordas (portanto, sem limites), ligeiramente inclinado para a frente.  Ao fundo e nas laterais, há uma parede, toda forrada de tule branco, que, ao receber luzes coloridas, confere, ao espaço cênico, uma beleza ímpar e sugestiva para cada situação, vivida em outro plano, como, por exemplo, o velório da avó do protagonista (excelente cena).
 

            Os figurinos são de RITA MURTINHO.  Um simples vestido estampado para ELA e uma calça jeans, bem casual, para ELE, além de uma camisa social e um paletó de veludo preto (ainda bem que o ator o veste durante pouco tempo, neste verão senegalês do Rio de Janeiro).  Durante uma parte do espetáculo, os personagens vestem um a roupa do outro, uma bela sacada da direção.  Assistam e procurem descobrir a simbologia desse ato.


            Excelente é a iluminação de ELISA TANDETA, cujo trabalho, creio, ainda não conhecia ou, pelo menos, não me recordo no momento.  As trocas de luz são perfeitas, para realçar cada detalhe das cenas.


            MARCELO ALONSO NEVES, um craque das trilhas sonoras, acertou, mais uma vez, neste trabalho.  Boa a sua pesquisa, que selecionou sons perfeitos para sublinhar a atmosfera de cada situação encenada.
Intimidades.


            Estão de parabéns todos os envolvidos no projeto!


            Confesso que a única coisa que me atraía ao Teatro Gláucio Gil era o nome do diretor, uma vez que, preconceituosamente (nunca se deve esquecer: preconceito é uma burrice), não esperava ver um espetáculo tão bom.
 

“Bom” é pouco; é ÓTIMO!

 


 

(FOTOS DE DIVULGAÇÃO DO ESPETÁCULO)

 






 

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