quinta-feira, 14 de agosto de 2014


SILÊNCIO

 

(INTOLERÂNCIA E HIPOCRISIA, TEU NOME É “SILÊNCIO”.)

 

 

 


 

 

 

            A cada novo texto, RENATA MIZRAHI se supera em talento, criatividade e sensibilidade. 

O comentário supra se faz valer pelo lindo espetáculo em cartaz, infelizmente apenas até o dia 24 de agosto, no Teatro de Arena do Espaço SESC Copacabana: SILÊNCIO, no qual, além de autora do texto, RENATA é a idealizadora do projeto.

            A decisão de sair de casa, no Rio de janeiro, e enfrentar toda sorte de obstáculos, com o objetivo de ir a um teatro, é para fazer a pessoa pensar mais de uma vez, até se tomar a corajosa decisão de concretizar o desejo.  Mas tem de ser por algum espetáculo que, realmente, valha a pena.  E, para ver SILÊNCIO, não se deve perder tempo nem poupar esforços.  É para a pessoa ir logo, na certeza de que sairá do Espaço SESC Copacabana feliz e recompensada, por ter travado conhecimento com um texto magnífico, interpretado por um elenco de primeiríssima categoria, sob a direção da própria autora da peça, junto com PRISCILA VIDCA, repetindo a vitoriosíssima dobradinha de OS SAPOS, que, até este SILÊNCIO, era o melhor texto de RENATA, ela que já nos brindou com alguns outros bons exemplos da dramaturgia contemporânea, como é o caso de Bette Davis e a Máquina de Coca-Cola, em parceria com outro grande talento jovem, Jô Bilac, além de vários textos premiados em teatro infantil.

 

 

 


Suzana Faini.

 

 

               O tema da peça é considerado um tabu, no seio das famílias judaicas, principalmente entre os mais ortodoxos e tradicionais.  Fala da existência e do sofrimento de mulheres judias, trazidas, do Leste Europeu, para o Brasil (a maioria) ou vindas por conta própria, no final do século XIX e início do passado, até o período da 2ª Grande Guerra Mundial, para serem escravizadas, sob a forma de prostitutas, até por seus próprios pares, homens judeus inescrupulosos.  Eram chamadas de “polacas”. 

Apesar da originalidade do tema e da grandeza do texto de SILÊNCIO, o assunto já fora, ainda que por um viés bem diferente, explorado em outra peça, encenada, recentemente, em terras brasileiras, em 2012, aqui, no Rio de Janeiro, no CCBB, com grande sucesso: As Polacas – Flores do Lodo, um musical, escrito e dirigido por João das Neves, sendo o elenco formado por Alexandre Akerman, Gilray Coutinho, Ilea Ferraz, Ivone Hoffman, e Luciana Mitkiewicz, dentre outros.



A sinopse de SILÊNCIO pode ser assim, de forma bem sucinta mesmo, apresentada:

 

 
A história se passa nos dias de hoje, num jantar de família judaica, em que o patriarca DAVID (JITMAN VIBRANOVISKI), marido de ESTHER (SUZANA FAINI), conta que está escrevendo um livro sobre sua vida.  As revelações provocam indignação, brigas e um final surpreendente.
 

 

 



Jantar em “família” (Shabat).

 

 







Farpas e acusações.

 

 

Esmiuçando a sinopse, podem ser acrescidos os seguintes detalhes:





1) O jantar se realiza no apartamento de DÉBORA (GABRIELA ESTÊVÃO), a neta mais nova do casal DAVID e ESTHER.  Trata-se de um jantar comemorativo do SHABAT, nome dado ao dia de descanso semanal, no judaísmo, simbolizando o sétimo dia em Gênesis, após os seis dias de Criação.  Também o tal jantar serve como motivo de comemoração dos cinquenta anos de REGINA, a mãe da anfitriã.
 
2) Os primeiros a chegar são os avós.  Estão sendo, ainda, esperados, os pais de DÉBORA, BETO (ALEXANDRE MOFATI) e REGINA (VERÔNICA REIS), e a outra filha do casal, CLARA (KAREN COELHO).



3) Há, por parte de quase todos, também, uma expecativa pela presença de FLÁVIO (VICENTE COELHO), noivo da dona da casa, especialmente por parte da avó, que vê, naquela oportunidade, uma grande esperança de um pedido de casamento por parte do rapaz, para livrar a jovem neta de “ficar para titia”.




4) Fica-se sabendo que o avô vive trancado em seu quarto, guardando um grande segredo, o qual, no decorrer da peça é revelado: um livro que está escrevendo.




5) Sabe-se, também que CLARA trabalha para o avô, numa misteriosa pesquisa, fornecendo-lhe subsídios para a escrita do livro.

 

 


Preparando o ambiente para o jantar.

 

 

Desde sua primeira aparição, até quase o final da peça, ESTHER se revela uma criatura ranzinza, intolerante, uma vítima do “mundo cruel”, de tudo e de todos, e não poupa comentários desairosos, desferidos contra o marido, DÉBORA e, principalmente, CLARA, a quem ofende, de forma mais explícita e agressiva.

A chegada do casal BETO e REGINA põe em relevo uma relação matrimonial de fachada, representada por um homem totalmente alheio ao seu papel de marido, dominador, quase perverso, insuportavelmente desagradável e inoportuno nas suas tentativas de levar leveza ao ambiente, por meio de piadas sem a menor graça, e uma mulher fraca, física e interiormente, destruída pela submissão e pelo péssimo tratamento que lhe é imposto pelo cônjuge.

As múltiplas e sucessivas discussões, quase sempre provocadas e iniciadas por ESTHER, vão num crescendo, muitas delas girando em torno da cumplicidade entre DAVID e CLARA e no mistério oculto pelos dois, e explode num momento em que, depois de muitas farpas trocadas e, também, de muitas palavras engolidas, os silêncios não digeridos, como em Os Sapos (a personagem de Paula Sandroni, lá, se assemelha um pouco à de VERÔNICA REIS, cá), DAVID, de forma surpreendente, sai do seu silêncio, guardado ao longo de quase toda a narrativa, e explode numa revelação bombástica, num extenso e denso monólogo, de levar o público às lagrimas, concluindo, assim, o quebra-cabeça que vai sendo construído ao longo da história.

 

 

 


Alegria aparente (SHALOM!).

 

 

Aspectos relevantes na trama:


a) Não se pode falar, propriamente, num confronto entre as duas jovens irmãs, entretanto há um grande contraste entre elas: enquanto DÉBORA é a própria “Poliana”, enxergando um mundo cor-de-rosa, lutando pela preservação da harmonia familiar, fechando os olhos à hipocrisia e aos preconceitos que, a todo momento, vêm à tona, uma jovem, até certo ponto, ingênua e conformada, CLARA é destemida, independente, representa o perigo, o desafio para a porção tradicional do clã.  Foge completamente à ortodoxia da sua cultura e se mostra aberta a novos conhecimentos, a novas experiências, ao novo, ao vivo.  É revolucionária sem o ser; apenas está antenada, atenta à modernidade, aos avanços tecnológicos e sociais que ditam os valores no mundo moderno em que vive, sem desprezar, totalmente, suas raízes e disposta a auxiliar o avô a corrigir uma grande injustiça, que vai abalar toda a família nos dez ou quinze minutos finais da peça.





b) A diferença de pensamentos, de visões de mundo, das duas irmãs jovens e a conduta do jovem DAVID, em relação à postura dos demais personagens,  põem em relevo um certo conflito de gerações, do ponto de vista cultural, que é desfilado ao longo de toda a trama.  RENATA, que, como pessoa, consegue reunir a doçura de DÉBORA ao arrojo de CLARA, soube, muito bem, trazer para a ficção essa realidade que venho observando, já há algum tempo, dentro das famílias de queridos amigos judeus com os quais convivo.




c) Há de se louvar a longa e minuciosa pesquisa desenvolvida pela autora, sobre o tema, indispensável para o belo resultado do texto final da peça.





d) A despeito de se tratar de uma família judaica e da temática central da peça girar em torno de algo que diz respeito, diretamente, a uma determinada cultura, pode-se perceber, na discussão familiar, traços comuns a qualquer outro tipo de família, uma vez que, pelo palco, desfilam situações e relações de verdade e mentira, amor e ódio, drama e humor (principalmente provocado por ESTHER), crueldade e compaixão, falsidade e verdade, saudosismo e modernidade, ingredientes presentes em qualquer relação ou encontro familiar.

 

            Sobre os atores e seus personagens:




            SUZANA FAINI (ESTHER) – Essa magnífica atriz haverá de marcar este ano teatral de 2014, com sua magistral composição da personagem.  Com seus 81 anos de idade e com algumas décadas de experiência no palco, como atriz e bailarina, além do cinema e da televisão, é a atração maior desta montagem, não só pela força da sua personagem, mas, principalmente, pela qualidade de sua interpretação, do início ao final do espetáculo.  Não há um momento em que seu talento não seja notado e reconhecido em cena (aplausos em cena aberta), mesmo quando não participa dela, diretamente, ou quando fica fora, literalmente, do foco dos refletores.  ESTHER é sarcástica, cruel, excessivamente “sincera” em suas posições e é a grande provocadora de boas gargalhadas, motivadas por suas falas, desprovidas de qualquer censura e autocrítica.  Acha-se modelo de virtude, de mãe e de mulher, e julga-se a detentora de todo o saber dentro da família, a “dona da verdade”, demonstrando, sempre, uma preocupação com “o que os outros irão pensar ou dizer”.  Defende, descaradamente, o genro, contra a filha, a quem classifica como uma “fraca”.   É um privilégio poder aplaudir, de pé, essa grande dama do TEATRO BRASILEIRO.

 

 


Suzana Faini, roubando a cena.

 

 

           

            JITMAN VIBRANOVSKI (DAVID) – Acompanho seus trabalhos, desde o tempo do antigo Conservatório Nacional de Teatro, embrião da atual UNI-RIO, no final da década de 60, e não me lembro de tê-lo visto tão completo e intenso, em cena, como neste espetáculo.  De início, com SUZANA FAINI “roubando” a cena, parece que DAVID estaria fadado a ser uma “escada” para a mulher, entretanto, ao longo da trama, JITMAN vai evoluindo, em termos de interpretação, acompanhando o grande desejo de seu personagem, em colocar seu silêncio para fora, e chega, nos minutos finais da peça, a mexer tanto com a sensibilidade da plateia, que, a cada mínimo hiato de seu longo texto, o voar de uma mosca poderia ser auditivamente percebido no ambiente.  Um grande momento para o TEATRO BRASILEIRO é a sua revelação e a composição de seu personagem.



            ALEXANDRE MOFATI (BETO) – Demora um pouco a entrar na trama, mas, quando o faz, marca presença em cena, com sua composição de um ser profundamente inconveniente, bajulador, principalmente dos sogros; é daqueles que gostam de “jogar para a plateia”; falso, hipócrita, dúbio, cínico, até certo ponto; insensível e totalmente alheio à esposa (a quem humilha, sem piedade), ao seu sofrimento, aos seus sentimentos, fazendo sempre questão de demonstrar seu falso interesse por REGINA, mas foi incapaz de acudir a mulher, no momento em que esta passa mal, relacionando o mal-estar da esposa à falta de alimentação, forçando-a a ingerir “batatinhas”, como uma panaceia para curá-la do que ele julgava ser uma simples indisposição, por falta de alimentação.  Ótimo o trabalho do ator.



            VERÔNICA REIS (REGINA) – É a personagem de menor texto na trama, mas, paradoxalmente, a detentora dos silêncios mais expressivos.  Enquanto todos tentam, de uma maneira ou de outra, de forma mais ou menos contundente, “vomitar” suas angústias, suas revoltas, suas inquietações, suas mágoas, ela se mantém, a maior parte do tempo, calada, submissa, mas é a única a vomitar, literalmente, após o jantar, o que não conseguiu digerir, numa somatização autoexplicável.  Discreto e, ao mesmo tempo, excelente o trabalho da atriz.


            GABRIELA ESTEVÃO (DÉBORA) – Boa presença em cena, a atriz conseguiu, já no dia da estreia, atingir o tom de interpretação que julgo devido à sua personagem.  Apaziguadora, por excelência, sua posição de tolerante em potencial, candidata à “Medalha Madre Teresa de Calcutá”, se opõe ao caráter belicoso da avó.  Descobra-se, dentro de suas possibilidades, para manter a paz e a harmoina dentro da família, tentando, até onde consegue, adiar a explosão da bomba-relógio preparada pela autora do texto.
  

KAREN COELHO (CLARA) – Trata-se de uma boa atriz, que, mais uma vez, consegue vestir sua personagem com as roupas adequadas à sua função na trama.  Por fora, uma doce figura feminina, com uma aparência que contrasta, totalmente, com suas atitudes, quando se trata de defender suas ideias e valores.  É firme e correta nas cenas em que precisa de muito vigor, para despejar, sobre seus “adversários”, a argumentação, por mais fria e cruel que possa parecer esta, para provar que sempre esteve certa em aceitar o desafio do avô e auxiliá-lo em suas pretensões.  Valoriza bastante o texto de RENATA 



VICENTE COELHO (FLÁVIO) – É um personagem de menor relevância na trama, mas surge num momento muito importante e, na sua "inocência", pois não sabe o que ocorrera naquela sala de jantar, minutos antes de sua chegada, vai auxiliar na aparente restauração de um ambiente familiar.  Chega como um arauto de boas novas, de bons ventos, inclusive oficializando o tão aguardado pedido de casamento, para alívio de ESTHER.  Bela composição de personagem.   

 


Vicente Coelho (Flávio).

 

 

 


Elenco.

 

 

Após a surpreendente revelação de DAVID, que omitirei, para não roubar ao leitor o prazer e a emoção de sabê-la, é como se um tsunâmi invadisse a arena, gerando um incômodo estarrecer, que leva a matriarca a um ligeiro desfalecimento, até que, uma vez restabelecida, passa a fazer parte, também, da “celebração” religiosa, um ritual comandado por FLÁVIO, numa bela e emocionante interpretação de uma oração seguida de um cântico.  

Sim, o tão aguardado Flávio, que surge, providencialmente, para pedir a mão de DÉBORA em casamento, para alegria de todos, prontos a dar prosseguimento à vida, sabe-se lá como, mas com a certeza de que “o ‘show’ tem que continuar”.

 

A peça é feita de silêncios e sons; aqueles tão importantes quanto estes.


RENATA MIZRAHI disse, em palavras e em silêncios, tudo o que havia para ser dito. 


E, despudoradamente plagiador, digo que "o resto é SILÊNCIO"! 


Chegada de David (final do jantar).

 

 

 

O texto da peça é um primor, não só pela temática, como também pelo movimento nos diálogos, a linguagem simples, com a utilização de um vocabulário econômico, porém de profundo alcance significativo.  RENATA MIZRAHI tem como uma de suas maiores características a propriedade de falar pouco e dizer muito, inclusive com seus silêncios.



É muito boa a direção da dupla RENATA e PRISCILA, principalmente por saberem explorar muito bem o espaço de que dispõem numa arena.  Num palco italiano, certamente, as soluções para entradas e saídas dos atores, assim como a arquitetura cenográfica seriam outras, de mais fácil resolução, não sei se de igual excelente resultado, como acontece nesta montagem..  A opção das diretoras foi manter os atores à vista do público, porém fora dos focos de luz, em espaços convencionados como uma cozinha e um quarto.  Excelente ideia! 

Quanto à condução dos atores, a orientação passada a cada um, fiquei com a impressão de que o texto é tão fluente, as situações são tão do cotidiano, à exceção da grande e misteriosa revelação final, que não houve muito o que dizer a cada um dos actantes sobre o que e como fazer.  Pareceu-me que todos se empenharam bastante na condução de suas linhas de interpretação, e o resultado global é excelente.

 

 


Esther, a “sempre vítima”.

 

 

Por oportuno, já que nos referimos aos elementos cenográficos, aplausos, mais uma vez, para NELLO MARRESE, por seu belíssimo e prático cenário, contando com a assistência de LORENA LIMA.




Os figurinos, de BRUNO PERLATTO, se integram, perfeitamente aos personagens e às exigências do texto.  São muito bonitos e expressivos, mesclando o moderno com o tradicional e, ao mesmo tempo, sóbrios e elegantes, tendo FRANCESCA FACHINELLO como assistente.





A iluminação, de RENATO MACHADO, também me agradou bastante, ela que, discreta, não apresenta grandes variações, pela própria natureza do texto e da encenação.





Completam a ficha técnica:


FLÁVIA MILIONI – ASSISTÊNCIA DE DIREÇÃO

MÁRCIO FREITAS – PROGRAMAÇÃO VISUAL

RENATO MANGOLIN – FOTOGRAFIAS

SID ANDRADE – VISAGISMO

TAMIRES NASCIMENTO – PRODUÇÃO EXECUTIVA

ALAN ISIDIO – ADMINISTRAÇÃO

SHEILA GOMES – ASSESSORIA DE IMPRENSA

SANDRO RABELLO – DIREÇÃO DE PRODUÇÃO

 

 

 


Aplausos!!!   BRAVO!!!

 

 

SERVIÇO:

Local: Teatro de Arena, no Espaço SESC Copacabana

Endereço: Rua Domingos Ferreira, 160 – Copacabana

Data: de 1º de agosto a 24 de agosto de 2014

Horário: de quinta a sábado, às 20h30; domingo, às 19h

Preço: R$ 5 (associados SESC), R$ 10 (estudantes e idosos) e R$ 20 (inteira)

Bilheteria (vendas antecipadas): de terça a domingo, das 15h às 21h

Duração: 80 minutos

Classificação etária: 12 anos

Capacidade de público por sessão: 240 lugares

Informações: (21) 2547-0156

 

 

 


Criatura (Suzana Faini/Esther) e criadora (Renata Mizrahi).

 

 

 


As diretoras: Priscila Vidca e Renata Mizrahi.

 

 


A autora e diretora (Renata) “invade” a cena.  Com Jitman Vibranovski e Verônica Reis.

 

 


(FOTOS: RENATO MANGOLIN)

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 






 

 

 

 





 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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