segunda-feira, 15 de setembro de 2014


CRÔNICAS DE NUESTRA AMÉRICA

 

 

(SAUDADE DO BOAL.)

 

 

 

 


 

 

 

            Há os que, como eu, apenas lamentam o nefasto prejuízo, pelo qual pagamos até hoje, que nos foi “legado” pelo golpe militar de 1964.  Outros, além disso, sofreram, na pele, em todo o corpo e na alma, as dores impostas por quem perseguia aqueles que eles julgavam “comedores de criancinhas”, no sentido antropofágico.

 

            AUGUSTO BOAL foi um desses “subversivos”, que teve de procurar, no exílio, condições para sobreviver à grande perseguição que lhe era imposta pelos ditadores, os quais se sucediam no poder, apenas pelo “crime” de ser um gênio e não se calar aos desmandos e arbitrariedades dos (des)governos militares.  Chegou a ser preso e torturado.

 

            BOAL não foi; é, e sempre será, um grande gênio, que nos legou, este sim, obras primorosas.  Ficar aqui, falando sobre sua vastíssima produção artística, ocuparia um grande espaço.  Ele, que faleceu em 2009, aos 78 anos, “foi um grande dramaturgo, ensaísta, diretor e teórico do TEATRO, uma das principais lideranças, na década de 60, do Teatro de Arena, além de ter sido criador do Teatro do Oprimido, metodologia internacionalmente conhecida, que alia teatro a ação social, e que é um método teatral e modelo de prática cênico-pedagógica, sistematizados e desenvolvidos, por ele, nos anos 70, com características de militância e que se destinava à mobilização do público, vinculando-se ao teatro de resistência.”  O Teatro do Oprimido bebeu nas fontes das teses do grande educador Paulo Freire.  Sobre o TO, dizia BOAL: O Teatro do Oprimido é o teatro no sentido mais arcaico do termo.  Todos os seres humanos são atores - porque atuam - e espectadores - porque observam. Somos todos 'espectadores'”.

 

 

 

Peça retrata o cotidiano dos países do hemisfério sul na época dos regimes ditatoriais (Foto: Marina Andrade)

 



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Dentre seus principais trabalhos, destacam-se:

 

PEÇAS: Arena Conta Zumbi, Arena Canta Bahia, Arena Conta Tiradentes, Arena Conta Bolívar, Revolução na América do Sul, Primeira Feira Paulista de Opinião (idealizada por ele e também com textos de outros autores), Murro em Ponta de Faca, O Corsário do Rei, dentre outras, como autor, além de dezenas de direções, inclusive no emblemático Teatro Oficina.  É dele, também, a direção de um dos marcos da resistência à ditadura, o show Opinião, com Zé Kéti, João do Vale e Nara Leão, posteriormente substituída por Maria Bethânia.

 

LIVROS: Mais de 20 livros, publicados e traduzidos em mais de vinte línguas, como inglês, francês, alemão, espanhol, dinamarquês, norueguês e sueco, por exemplo.

 

MÚSICAS: Muitas de suas peças eram musicais e nos revelaram canções que, até hoje, são cantadas e relembradas com sucesso, quase todas em parceria.  E já que estamos falando de músicas, a canção Meu Caro Amigo, de Chico Buarque, em forma de uma carta, foi composta em homenagem a BOAL, quando de seu exílio em Portugal (“A Marieta manda um beijo para os seus / Um beijo na família, na Cecília e nas crianças / O Francis aproveita pra também mandar lembranças / A todo o pessoal / Adeus.”).

PRÊMIOS: De 1962 a 2008, colecionou cerca de 30 prêmios, em todas as atividades que exerceu, inclusive tendo sido indicado ao Prêmio Nobel da Paz, em 2008, por seu trabalho com o Teatro do Oprimido.  Em março de 2009, foi nomeado, pela Unesco, Embaixador Mundial do Teatro.

 

 A peça é uma adaptação de crônicas que Augusto Boal fez em seu exílio na Argentina

 

Espetáculo ganhou apoio do Instituto Augusto Boal (Foto: Marina Andrade)

 

Falemos, agora, de CRÔNICAS DE NUESTRA AMÉRICA:

 

Sem a menor sombra de dúvidas, trata-se de um dos melhores espetáculos em cartaz, no momento, um dos melhores que já vi nos últimos anos e, certamente, será inesquecível.  Entrará para a galeria de honra dos grandes espetáculos de TEATRO do Brasil, de todos os tempos.  Está em cartaz no Teatro Oi Futuro Flamengo, e lá ficará até o dia 28 de setembro.  Penso que deveria fazer um carreira muito longa – e para isso torço bastante - e ser visto por todos aqueles que sabem qualificar positivamente um espetáculo teatral.  ESTA PEÇA É DA MELHOR QUALIDADE.

 

Creio que os comentários acima já são suficientes para despertar, em que me lê, neste momento, o desejo de ir logo conferir, entretanto falarei ainda muito mais sobre a peça.

O espetáculo que motivou esta resenha, CRÔNICAS DE NUESTRA AMÉRICA, é uma genial adaptação, além da dramaturgia, que THEOTÔNIO DE PAIVA fez de algumas crônicas escritas por BOAL, entre 1971 e 1976, quando de seu exílio na Argentina.  São narrativas que traçam, com muita fidelidade, um quadro da vida cotidiana na América Latina dos anos 70.  Para isso, BOAL, não economiza talento e utiliza uma ótica de exilado, buscando elementos comuns aos habitantes do sul do linha do equador, o seu cotidiano, as suas mazelas, as diferentes formas de “cair, levantar a poeira e dar a volta por cima”, o que ele próprio praticou.  Cada uma delas, à sua maneira, aborda, de forma bem-humorada, a capacidade do povo latino-americano de superar as dificuldades e de encarar a vida de maneira sempre otimista, apesar dos regimes de exceção que, durante muitos anos, devastaram alguns países, como Brasil, Argentina e Chile, por exemplo, e cercearam a liberdade de expressão dos povos da América do Sul.


            Algumas dessas crônicas foram publicadas no inesquecível O Pasquim, um dos símbolos de resistência, durante os anos de chumbo, os quais mancharam, e mancharão, para sempre, a história de “nuestro” país.  “Em 1977, essas histórias foram publicadas em conjunto, num livro, sob o título de Crônicas de Nuestra América.  Todas elas trazem o olhar crítico, irônico – e, muitas vezes, engraçado – do escritor AUGUSTO BOAL, em uma faceta ainda pouco conhecida de sua obra: a do cronista mordaz e bem-humorado dos tempos obscuros da ditadura militar.”

 



 A encenação partiu de uma provocação que Cecília Boal, esposa de Boal e Presidente do Instituto Augusto Boal, fez ao diretor

 




 



            Segundo a psicanalista argentina Cecília Boal, sua viúva e presidente do Instituto Augusto Boal, seu marido era leitor assíduo do jornal La Razón, de Buenos Aires, em cujas notícias encontrava inspiração para seus escritos: histórias baseadas em fatos reais, engraçadas ou tristes, bizarras e mirabolantes, por vezes, as quais, lapidadas pelo esmeril da privilegiada imaginação e criatividade de BOAL, eram transformadas em crônicas deliciosas, irônicas e safadas, algumas com pitadas de um estilo que se aproxima das doces loucuras de Gabriel García Marques.  Pitadas de um realismo quase fantástico.  O próprio dramaturgo afirmava que muitos personagens de suas crônicas, ele os conheceu, manteve contato direto com eles, que outros lhe chegaram por narrativas do povo e alguns são fruto de sua cabeça.


            “A adaptação de THEOTONIO DE PAIVA é centrada no conto “O ‘Gato’, a mulher de Johnny e a bicicleta a motor” (Delícia de título!), que se passa nas Ilhas Falklands (Ou seriam Malvinas?), um território inglês, “terra de ninguém”. Algumas das outras histórias aparecem contadas por personagens da Ilha, como se fossem “impressões sobre o continente”.  Ao ouvi-las, ou vê-las encenadas, o espectador fica à vontade, para tentar entender até que ponto pode haver verossimilhança naqueles fatos ou o que possa ser considerado “normal” ou dentro dos padrões de normalidade impostos pela sociedade.


            O adaptador e responsável pela dramaturgia foi muito feliz no trabalho de costurar as histórias, resultando numa colcha de retalhos, em que cada um deles nunca está isolado, sempre se relacionando com os que o circundam, formando um todo indecomponível.  É fascinante como um fato puxa outro, que gera mais um, que leva a outro mais, que volta ao que já foi referido, num incrível encadeamento.  Nada se perdeu do “padrão BOAL de qualidade”; ao contrário, o trabalho de THEOTÔNIO DE PAIVA, mesclando narrativas e ricos diálogos, serviu para enriquecer, ainda mais, a obra.

 

 



 

 


            O que, primeiro, chama a atenção, logo que se adentra o teatro, é o cenário, de DANI VIDAL e NEY MADEIRA, um dos mais interessantes que já vi até hoje.  É impactante e desafia o espectador a entender o que está à sua frente, no palco, e o que pode ali acontecer.  Parece ser um navio estilizado; uma embarcação, pelo menos.  Mas há, agregados a uma grande e compacta estrutura, diversos elementos, no mínimo, curiosos, responsáveis por fazer com que o espectador experimente outras “adivinhações”.  Até então, não se sabe que a principal locação da trama será uma ilha.  Com o início do espetáculo, a grande surpresa: os atores vão entrando e movendo peças daquele “quebra-cabeças”.  Há uma desconstrução, para se dar uma construção do “verdadeiro” cenário.  Uma das sacadas mais geniais da direção (leia-se GUSTAVO GUENZBURGER, que também colaborou na adaptação), em trabalho conjunto, é óbvio, com a dupla de cenógrafos.  E essa prática de “tira daqui e põe ali, junta isto àquilo, façam-se os encaixes” prossegue até o final da peça, constituindo-se num elemento de destaque do espetáculo, para o que concorrem os deslocamentos de três torres, as quais se desdobram em vários cenários.  É de um efeito plástico belíssimo o bar cenográfico, com seu conjunto de garrafas, com “bebidas” multicoloridas, que vão sendo consumidas ao longo da peça.  Simplesmente, genial!

 

 

 


 

 

 


 

 

 

            A dupla DANI e NEY também assinam os figurinos da peça, muito bons, criativos, com a predominância de tons pastéis, assim como os do cenário, talvez – pode ser uma “viagem” minha - para evidenciar mais o trabalho dos atores, que é digno de todos os elogios.

 

            Não me sinto à vontade para destacar nenhum dos seis (dois atores e quatro atrizes), que se revezam e se multiplicam em vários personagens, inclusive com as mulheres fazendo papéis masculinos.  ADRIANA SCHNEIDER, CLARA DE ANDRADE, CARMEN LUZ, HENRIQUE MANOEL PINHO, LARISSA SIQUEIRA e LUCAS ORADOVSCHI realizam um trabalho digno de aplausos de pé e gritos de “BRAVO!”N.  Todos são protagonistas.  O elenco está de parabéns, por ter mergulhado fundo numa pesquisa e assimilado, com a maior profundidade de sua competência profissional, a proposta da direção e o texto, a ponto de encantar tanto a plateia.

 

            Um detalhe, por simples que possa parecer, mas que já me fez, desde a primeira cena, gostar do espetáculo, é a interpretação, a capela, por uma das atrizes, de uma canção que me toca fundo e que vivo a ouvir a a cantar: MEIA-NOITE, extraída do musical O Corsário do Rei.  Mal entrei no carro, depois de ter saído do teatro, em total estado de graça, pus-me a ouvi-la e a chorar.  Aconselho-os a conhecê-la.  Ela volta à cena no final do espetáculo.  E não poderia ter sido melhor escolhida nessa adaptação.  A letra tem tudo a ver com o somatório das CRÔNICAS. 

 

 

MEIA-NOITE

 

Se a noite não tem fundo,
O mar perde o valor.
Opaco é o fim do mundo
Pra qualquer navegador,
Que perde o oriente
E entra em espirais,
E topa, pela frente,
Um contingente
Que ele já deixou pra trás.

Os soluços dobram tão iguais,
Seus rivais, seus irmãos.
Seu navio carregado de ideais,
Que foram escorrendo feito grãos.
As estrelas, que não voltam nunca mais...
E um oceano pra lavar as mãos.

 

 As histórias são um retrato da vida cotidiana na América Latina dos anos 1970

 


 

            Gostei muito das cenas em que ocorrem mímicas e, em particular, à participação do personagem EL GATO.

            Um espetáculo como este, além de um excelente texto e de intérpretes de primeira linha, não atingiria o nível de qualidade de que se reveste, se não contasse com uma competente direção, a cargo de GUSTAVO GUENZBURGER, um jovem e talentoso profissional, cuja qualidade do trabalho deve ser exaltada.  São visíveis, em cena, toques da sensibilidade do diretor, que engrandecem a encenação.

            O responsável por uma iluminação irretocável é PAULO CÉSAR MEDEIROS, em mais um de seus primorosos trabalhos.  Boa parte da beleza estética da peça deve ser creditada a esse nome.

            Todos os demais profissionais que fazem parte da ficha técnica também têm uma boa parcela de colaboração para a grandeza do projeto.

 


 

FICHA TÉCNICA:

 

Texto: AUGUSTO BOAL

Direção: GUSTAVO GUENZBURGER

Adaptação: THEOTÔNIO DE PAIVA

Elenco: ADRIANA SCHNEIDER, CLARA DE ANDRADE, CARMEN LUZ, HENRIQUE MANOEL PINHO, LARISSA SIQUEIRA e LUCAS ORADOVSCHI.

Iluminação: PAULO CÉSAR MEDEIROS

Cenário e Figurinos: DANI VIDAL E NEY MADEIRA

Trilha Sonora: JOÃO GABRIEL SOUTO

Direção de Movimento: CARMEN LUZ

Programação Visual: RUTH LIMA

Fotografia: MARINA ANDRADE

Assistente de Direção: DIEYMES PECHINCHA

Assistente de Produção: REGINA MASCARENHAS

Produção Executiva: MARIANA BORGERTH

Diretor de Produção: LUIZ BOAL

Concepção do Projeto: CLARA DE ANDRADE, GUSTAVO GUENZBURGER e LUIZ BOAL

Idealização: INSTITUTO AUGUSTO BOAL

Realização: OLHAR BRASILEIRO PRODUÇÕES ARTÍSTICAS

Assessoria de Imprensa: NEY MOTTA

 

 




 



 

SERVIÇO:

 

Local: Oi Futuro Flamengo – Rua Dois de Dezembro 63, Flamengo – RJ.

Bilheteria: De terça a domingo, das 14h às 20h.  Aceita cartão de débito e crédito.

Capacidade de Público: 84 pessoas

Temporada: 21 de agosto a 28 de setembro.  De 5ª a domingo, às 20h.

(Não haverá apresentações nos dias 28/8 e 18/9)

Não recomendado para menores de 14 anos.

Duração: 70 minutos

 

 

Ao final do espetáculo, totalmente vencido pela emoção de ter assistido a uma obra-prima do TEATRO BRASILEIRO, ainda tive a grata surpresa de saber, por um dos atores, ao agradecer a presença do público, que o espetáculo daquela noite fora dedicado a CECÍLIA BOAL, viúva de AUGUSTO, que estava presente, sentada a duas cadeiras do meu lado.

 

Uma certeza fica, depois de ter assistido a este espetáculo: a “nuestra” América sente muita saudade de um gênio, chamado AUGUSTO BOAL, e precisava de que existissem muitos outros como ele.

 

 

 

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AUGUSTO BOAL – Saudade eterna!

 

 

 

(FOTOS: MARIANA ANDRADE)

 

 

 

2 comentários:

  1. A melhor peça da minha vida♥ A luz é um personagem distinto, estou encantada!

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  2. Gilberto,
    É um prazer ler seu texto, de acurada observação e delicada escrita!
    Para nós, já com o teatro no sangue, é recompensador saber que nossa obra é apreendida em todos os aspectos de sua criação.
    Viva Boal e o teatro brasileiro!
    Fica meu abraço,
    Ney Madeira

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