domingo, 27 de setembro de 2015


EM UM LUGAR CHAMADO

LUGAR NENHUM

 

 

 

(UMA BREJEIRA POESIA DRAMÁTICA.)

 

 


 

 

 
Segundo o “release”, enviado pela assessoria de imprensa do espetáculo (leia-se Julyana Caldas), adaptado, com cortes e acréscimos, em uma época marcada pelos excessos, pelo imediatismo e pela urgência “EM UM LUGAR CHAMADO LUGAR NENHUM” aposta na simplicidade e na poesia das pequenas e importantes coisas que se deixam escapar durante a vida.
 
A todo tempo, somos submetidos a uma gama de informações, as quais nos impõem ideias, desejos e “necessidades” e, muitas vezes, não paramos para refletir sobre o que vemos ou ouvimos. Simplesmente, aceitamos o que nos é previamente imposto.
 
Inspirado na literatura de cordel, um dos maiores valores da cultura popular brasileira, nordestina, especificamente, o espetáculo apresenta o esquecido vilarejo de “Lugar Nenhum”, localizado no interior do nordeste, e traz à tona assuntos e situações que refletem a sociedade brasileira na sua atemporalidade.
 
Sempre de forma lúdica e divertida, as entrelinhas carregam fortes discussões sobre temas que levam o espectador a pensar sobre o indivíduo e o meio em que ele está inserido, tendo como fio condutor um tema singelo e leve – o amor – o que aproxima e atinge qualquer tipo de plateia.
 
Confrontar a realidade em que vivemos, estimulando a reflexão e a formação de um pensamento próprio, a partir de estímulos provocados pelo espetáculo, é a principal grande motivação para querer falar sobre “Lugar Nenhum”. O que desejamos é proporcionar um espetáculo que trata de temas muito próximos à realidade, sem maniqueísmos e de maneira simples, como deveria ser a vida.
 

 

 

Se esse era o desejo dos envolvidos no projeto, tenham eles a certeza de que conseguiram cumprir o seu intento, com um espetáculo simples, leve, bonito, brejeiro, verde-amarelo, sem ufanismos patrióticos.


 
SINOPSE:
 
Em 1950, em um vilarejo longínquo, nordestino, chamado “Lugar Nenhum”, pouco tempo havia, desde a chegada do maior meio de comunicação na cidade – a Rádio.
 
Através dela, os pacatos cidadãos daquele local tomam conhecimento do restante do mundo.
 
Sem que percebam, seja para o bem ou para o mal, esse aparelho moderno vira, “de ponta cabeça”, a vida de um jovem casal, o MOÇO e a MOÇA, o qual estava fadado a se conhecer, casar, trabalhar, ter filhos e... Só.
 

 

 

 


 

 

            Fico muito feliz, quando vejo a nossa cultura de raiz encenada, ainda mais quando o texto é de uma jovem atriz e dramaturga, AGATHA DUARTE, que, em seu primeiro texto para o TEATRO, concentrou todas as fichas na simplicidade e num tema nem um pouco original, já tão explorado na literatura dramática brasileira, porém revestido, aqui, de muita originalidade e criatividade.  Tudo o que já foi dito se torna original, quando há criatividade e amor no que se faz.  A julgar pela qualidade deste texto, tenho a certeza de que será o primeiro de muito outros, também bons, que hão de vir por aí.

 

O texto foi contemplado no edital “Cessão de Espaço CCBB”, o que lhe rendeu o direito à atual montagem, apresentado com patrocínio do Banco do Brasil e da Fundação CESGRANRIO, na figura do Professor Carlos Alberto Serpa, talvez o maior mecenas para os artistas cariocas.

 

Além de aplaudir bastante, não há muito o que discorrer sobre o que é feito com tanta simplicidade, mas também com muito talento, criatividade e extremo bom gosto.  Mas vamos falar um pouco do espetáculo.

 

Os personagens que formam o casal de protagonistas são anônimos, porque podem receber os mais variados nomes, na pia batismal.  Representam uma legião de pessoas parecidas, nos sonhos, desejos, aspirações, utopias...  São, mais ou menos, clichês: o da moça interiorana, sonhadora, curiosa, ávida por conhecer o desconhecido, além limites da sua pequena e esquecida cidadezinha, instigada pelas novidades apregoadas pela Rádio; o do moço apaixonado, que sonha em formar uma família, sem jamais abandonar as suas raízes, as quais o fixam na terra natal.  São, por isso mesmo, chamados, no transcorrer de toda a peça, de MOÇO (RAFAEL CANEDO) e MOÇA (AGATHA DUARTE).

 

 


 

 

Há, ainda, um terceiro ator em cena, GUILHERME DELLORTO, que atua como um narrador, conduzindo o fio da história, mas também se multiplica em alguns outros personagens. 

 

O texto é leve e delicado, reproduz o falar ingênuo e, às vezes, de complicada compreensão, do sertanejo nordestino, com seus regionalismos, o que é muito bom, por resgatar um valor cultural que precisa ser lembrado e valorizado.  Os diálogos não poderiam ser mais naturais e autênticos.  Nota-se que a jovem dramaturga mergulhou fundo numa pesquisa linguística regional, para escrever o texto da peça.  Escrito, em grande parte, em versos rimados, há, nele, algumas passagens de puro lirismo e bastante sabedoria, como a o momento em que a MOÇA diz que pretende ir “para um lugar onde a vida não se esqueça de passar”.

 

            Quanto ao elenco, nota-se um grande entrosamento, entre o trio de atores, com boas atuações de RAFAEL, AGATHA e GUILHERME.

 


O elenco.

 


Guilherme Dellorto, Agatha Duarte e Rafael Canedo.

 

 

            RAFAEL CANEDO, cujo trabalho em “O Estranho Caso do Cachorro Morto” poderia, e deveria, ter-lhe rendido algum prêmio - na verdade, chegou a ser indicado ao Prêmio de Melhor Ator no Prêmio Cesgranrio de Teatro 2014 – aparece, aqui, como o MOÇO, romântico, preso aos valores da terra, da qual tira o seu sustento e o da mãe.  Ao se encantar com a MOÇA, por ela se apaixona, prometendo trazer-lhe o mundo, tão distante quanto a lua, quando, na verdade, “o mundo tem o tamanho que queremos que ele tenha” e fica a uma distância de nós muito menor do que a imaginamos. 

 

Vindo de uma atuação como Chicó, em “O Auto da Compadecida”, para cuja composição teve de se submeter a um trabalho de prosódia, a fim de conseguir reproduzir a fala de um nordestino do interior, RAFAEL repetiu, neste espetáculo, corretamente, o modo de falar exigido por seu personagem.  Quanto à sua atuação, no geral, é muito boa.  Faço-lhe, apenas, dois comentários, que lhe podem servir de alerta, para que seu trabalho cresça mais ainda.  O primeiro diz respeito à necessidade de corrigir a articulação dos fonemas sibililantes, em alguns momentos.  Nada de tão grave, que não possa ser facilmente, e em pouco tempo, corrigido, com a ajuda da fonoaudiologia.  O outro aspecto, bem mais importante, envolve o emocional.  Pela grande carga emotiva aplicada na construção do Christopher, interessantíssimo e riquíssimo personagem, que sofre de síndrome de Asperger, uma espécie de autismo, esplendidamente representado por RAFAEL, em “O Estranho Caso do Cachorro Morto”, penso ter notado, ainda – o que é compreensível, mas não desejado – algumas sombras do personagem no ator.  Parece que não se consolidou, completamente, o desapego, o “desercarne” do Crhis. 

 

Explico: uma das principais características do personagem era falar alto, terminando as frases numa entonação ascendente.  É a isso que o ator deve estar atento.

 

Quero deixar bem claro que, para os que, infelizmente, não tiveram a oportunidade de aplaudir RAFAEL CANEDO, em “...Cachorro Morto”, não faz sentido o que estou dizendo agora e, obviamente, aceitarão o MOÇO da maneira como ele se apresenta.  Nada desses dois comentários compromete o bom trabalho de RAFAEL, que conquista a plateia, desde suas primeiras aparições, com o ápice numa cena em que interpreta um galã, numa radionovela, durante a qual arranca muitas gargalhadas, com suas pausas e inflexões típicas daqueles programas de rádio de décadas passadas.

 

 


Rafael Canedo e Guilherme Dellorto.

 

 

            AGATHA DUARTE cumpre, com profissionalismo, graciosidade e competência, a sua função de atriz, vivendo a MOÇA, idealista, inconformada com a mesmice de “Lugar Nenhum”, sempre à procura do desconhecido, como forma de atingir a felicidade plena, ainda que, para ela, como para todas as pessoas, este seja sempre uma incógnita, que pode trazer alegrias e/ou tristezas.  O advento da Rádio local, esta quase um personagem na história, foi o estopim para que a personagem, por se mostrar encantada e curiosa com as novidades do “mundo grande”, tomasse a decisão de ir ao encontro do futuro, do progresso tão desejado por ela. 

 

AGATHA, assim como RAFAEL, desembaraça-se na utilização da prosódia nordestina, que a personagem exige, e acrescenta, a cada uma de suas falas, uma dose de brejeirice, que encanta a plateia, reforçada por sua expressão corporal e suas carinhas de sonhadora, romântica, habitante de um mudo imaginado e idealizado, totalmente cor-de-rosa. 

 

A MOÇA quer - mais do que isso: exige - o novo, ao passo que o MOÇO é acomodado e descrente das “mentiras” que a Rádio apregoa.  Para ele, há dois mundos: o real, o palpável, o ruim, em que vivemos; e o mentiroso, o etéreo, o mau, o da Rádio.  Para mim, AGATHA é uma revelação de atriz, dada sua pouca idade e incipiência (com “c” mesmo) na carreira, o que é indício de novos e ótimos trabalhos.

 

 


Agatha Duarte e Rafael Canedo.

 

 

            Quanto ao ator GUILHERME DELLORTO, que, salvo engano, nunca havia visto, em cena, confesso que fiquei muito bem impressionado com sua atuação.  Aparece, no início da peça como um narrador, o que me fez pensar que tudo giraria, apenas, em torno de RAFAEL e AGATHA, que interpretam os protagonistas, e que GUILHERME seria um coadjuvante, na trama.  Sim, ele o é; mas há coadjuvantes e “coadjuvantes”.  Ele pertence a esta classificação, destacada pelas aspas.

 

            GUILHERME é muito bom ator, e isso é comprovado a partir do momento em que começa a viver outros papéis, saindo da função de narrador e incorporando cada personagem, e vice-versa, com muita naturalidade, assumindo vozes e posturas que cada um requer.  Na pele da mãe do MOÇO, de um pescador “conselheiro do casal”, de um conquistador barato ou como um radialista, o ator se destaca por seu correto trabalho.  Além disso, ainda arrisca tirar umas notas de um acordeão, muito bem incorporado a algumas das cenas da peça. 

 

É sempre motivo de grande alegria saber, e ver, que muitos talentos jovens, como GUILHERME, RAFAEL e AGATHA, estão surgindo nos palcos.  A cada semana, fico conhecendo o trabalho de um, ou mais.  O nome disso é “renovação”, “sangue novo” para o TEATRO BRASILEIRO.

 

 


Guilherme Dellorto.


 

            Dirige o espetáculo ROGÉRIO FANJU e o faz de forma inteligente e criativa.  Por que, e para que, complicar o que, por si, já é tão simples e pode funcionar bem?  A sofisticação nem sempre conduz ao sucesso.  Já a simplicidade, via de regra, se aproxima mais dele.  Essa foi a tônica empregada por ROGÉRIO, na direção deste espetáculo.  Ele deixou que o bem construído texto andasse por si só, que fluísse, sob as rédeas dos três ótimos atores, criando, aqui e ali, agregando, lá e acolá, optando por um palco mais amplo, para que os atores o preenchessem.  Muito bom trabalho!

 

            No programa da peça, lê-se que o responsável pela cenografia é o consagrado e premiado cenógrafo JOSÉ DIAS, o que já gera uma boa expectativa.  Quando entra no teatro, estranhamente, o espectador se depara com um palco vazio, completamente desprovido de elementos cenográficos.  E onde está o cenário do ?  Trata-se de uma grata surpresa, pois ele se apresenta sob a forma e excelentes projeções e, durante os 80 minutos de duração do espetáculo, o espaço cênico vai sendo preenchido com algumas (poucas) pequenas e muito simples peças, como uma cama, uma mesinha, um banco, um rádio de pilhas, um microfone com pedestal, apenas o mínimo suficiente para compor os locais em que se dão as cenas.  O espaço cênico é do ator e, tão simplesmente, para ele.  O destaque da cenografia vai mais para as projeções.

 

Todo esse conjunto é muito bem iluminado pela luz, de LEYSA VIDAL, que, de forma bem natural e simplificada, valoriza determinadas ações, por vezes, dividindo-as, no palco, graças aos seus diferentes pontos e intensidade de luz.

 

 


Detalhes do cenário e da iluminação.

 

 

            Os figurinos, de DANIELE GEAMMAL, são perfeitos, adequados à década de 50.  O de GUILHERME é um bem talhado terno, meio cinza, meio azul claro, uma cor meio indefinida, de tecido brilhante, que o ator veste, do início ao fim da peça, mesmo quando incorpora outros personagens, além do narrador.  Isso estimula a imaginação do espectador.  Eu o “vi” com figurinos diferentes, em cada personagem.  Para mim, o terno era uma espécie de segunda pele.  AGATHA usa vestidos com padronagem delicada, florida, bem femininos, leves e recatados, como a personagem.  RAFAEL também mantém o mesmo figurino, durante toda a peça, no qual predominam tons próximos à cor da terra, talvez – ainda não se paga imposto para imaginar e interpretar – seja para marcar a fixação do personagem pela terra.  Será que o meu voo foi muito alto?

 

            A excelente direção musical é de ROBERTO BAHAL.  É muito boa a variação dos arranjos para um lindo tema musical, frequentemente executado durante a peça, apenas instrumental, composto por ROBERTO, e que aparece, depois de encerrado o espetáculo, na íntegra, com uma bela letra agregada.  É uma pena que o público saia do teatro, ao som da linda canção, e não se dê conta dela.  Fica, aqui, a sugestão, já feita, pessoalmente, a ROGÉRIO FANJU, para que a música seja executada antes do início da peça.  Dessa forma, não só o público a ouviria na íntegra como também iria identificá-la nas inserções instrumentais posteriores.

 

 


Agatha e Rafael.

 

 

Embora já tenha feito menção às projeções, à guisa de complementação do cenário, ainda não disse que os belos desenhos projetados foram criados por LEYSA VIDAL.

 

Momentos da peça que merecem destaque:

 

1) A primeira noite de amor do casal de protagonistas é encenada sem nenhuma apelação, envolta em muito lirismo.

 

2) A cena entre o MOÇO e a mãe, pela beleza e profundidade do texto e pela interpretação dos atores.

 

3) A cena da radionovela, pela fiel reprodução daquilo que foi a febre dos anos 50 e 60.  Eu os vivi e digo que a encenação está perfeita, no que diz respeito aos clichês da época, com destaque para as afetadas inflexões dos atores.

 

4) Os questionamentos sobre o tempo, tanto da parte do MOÇO quanto da MOÇA.  O texto é profundo, valorizado pela interpretação de RAFAEL e AGATHA.

 

5) A cena em que, num “bife” (fala muito longa de um personagem, por meio da qual, normalmente, quem a diz tem a oportunidade de se destacar, demonstrando sua capacidade interpretativa), o MOÇO fala dos males que ele constatou, ao conhecer o “mundo novo e grande”, e mau, que a MOÇA não merecia.

 

6) O mesmo se pode dizer, com relação à MOÇA, ao se deleitar, sonhando com as novidades do mundo que procurava conhecer.

 

7) O texto, em versos, ao estilo cordel, cujo mote é “paisagem do interior”, dito pelos três atores, quase ao final da peça.  Fiquem atentos a ele.

 




Rafael, Guilherme e Agatha – três jovens talentos.

 

 


Por tudo o que aqui foi dito, e por muito mais, recomendo este espetáculo, que, certamente, fará bem à alma e aos corações de todos.  

 

 


 

 

 

 
FICHA TÉCNICA:
 
Texto: Agatha Duarte
Direção: Rogério Fanju
 
Elenco (por ordem alfabética): Agatha Duarte, Guilherme Dellorto e Rafael Canedo   -   Paes de Luna (“stand in”)
 
Direção Musical e Trilha Original: Roberto Bahal (Exceto “Luar do Sertão” e “O Cisne”)
Intérprete da Música Tema “Lugar Nenhum”: Thiago Pach
Cenografia: José Dias
Projeto de Iluminação e Design de Gobos: Leysa Vidal
Iluminador Assistente: Luiz Oliva
Operador de Luz: Romiro Vasquez
Preparação Corporal: Sandra Prazeres
Figurino: Daniele Geammal
Assistente de Figurino: Lu Ribeiro
Modelista: Maria Amélia da Silva
Costureira: Conceição Teixeira Faria
Assessoria de Imprensa: Julyana Caldas – JC Assessoria de Imprensa
Fotografia: Ronaldo Júlio e Robson Sanchez Pinto
Programador Visual: Johnny Ferro
Produção: Rafael Canedo e Agatha Duarte
Direção de Produção: Robson Sanchez
Idealização: Agatha Duarte e Rafael Canedo
Autor do Poema “Paisagem do Interior” (publicado no livro “Paisagem de Interior”, pela Edições Bagaço – 1996): Jessier Quirino
 

 

 

 
SERVIÇO:
 
Local: Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB) – Teatro II – Rio de Janeiro
Endereço: R. Primeiro de Março, 66 – Centro – Rio de Janeiro
Dias e Horários: De 6ª a 2ª feira, às 19h30min
Temporada: Até 26 de outubro
Duração: 80 minutos
Valor do Ingresso: R$ 10,00 e R$5,00 (meia-entrada)
Classificação: 12 anos
 

 

 

 

(FOTOS: ROBSON SANCHEZ PINTO)

 

 

 


Com Rafael Canedo (foto: Marisa Sá).