quinta-feira, 6 de outubro de 2016


CHICA

DA

SILVA

– O MUSICAL

 
(A NEGRA...)

 

 
 
 
 
            Uma das mais conhecidas personagens da História do Brasil, passando a ser “de domínio público”, depois da canção composta por Jorge Bem Jor (“Xica da Silva”), que serviu de tema para um filme de Cacá Diegues, em 1976, com o mesmo título, para sempre, eternizada, na brilhante interpretação de Zezé Mota, Xica da Silva (a negra), volta aos braços do povo, agora no TEATRO, sob a forma de um musical muito interessante e bem construído, no palco do Centro Cultural Correios.

            Só que a Xica do século XXI sofreu uma mudança ortográfica e virou CHICA, e nada tem a ver com a personagem da História, que viveu no século XVIII. Ou melhor, até tem, graças à genialidade de RENATA MIZRAHI, dramaturga que criou o texto, a partir de uma pesquisa de DANIEL PORTO.

RENATA quis contar a história de outra CHICA e decidiu fazer uso da intertextualidade, que nada mais é do que a criação de um texto a partir de outro pré-existente e pode apresentar funções diferentes, as quais dependem muito dos textos/contextos em que ela é inserida, ou seja, dependendo da situação. Por meio de um hipertexto, apresentação de informações, organizadas de tal maneira, que o leitor tem liberdade de escolher vários caminhos, a partir de sequências associativas possíveis entre blocos vinculados por remissões, sem estar preso a um encadeamento linear único, contou, paralelamente, duas histórias, com ênfase na CHICA de hoje, ambas, porém, ligadas por fatos e situações afins.

 
 
 
Vilma Melo.


            Na verdade, a escrava, que conseguiu sua alforria e se casou com o poderoso contratador de diamantes João Fernandes de Oliveira, viveu no século XVIII, de início, no Rio de Janeiro, mas se notabilizou no Arraial do Tejuco, hoje, a cidade de Diamantina, em Minas Gerais. Chamava-se Francisca da Silva de Oliveira, advindo-lhe, daí, o apelido de Chica. A grafia foi alterada, apenas, para o filme, talvez, ou com quase certeza, por uma questão de “marketing”. Xica com “X” é diferente e chama mais a atenção do público.

            As histórias das duas, que invadem uma o espaço da outra, são bem diferentes, mas são marcadas por um ponto em comum, que é de entristecer e revoltar qualquer pessoa sensata: ambas foram vítimas da segregação racial e social; mais aquela que esta, que acabam interligadas, já que esta, geralmente, é decorrência daquela.

            Vamos diferençá-las, para efeito de melhor compreensão do texto, pelas duas grafias. Xica, a personagem histórica; CHICA, a ficcional, saída da imaginação de RENATA MIZRAHI.

 

 
            Xica manteve, durante mais de quinze anos, uma união consensual estável com o rico contratador dos diamantes João Fernandes de Oliveira, tendo, com ele, treze filhos, embora já tivesse um, quando a ele se juntou. O fato de uma escrava alforriada ter atingido posição de destaque na sociedade local, durante o apogeu da exploração de diamantes, deu origem a diversos mitos. Reza a lenda que, amparada pela "proteção" do rico “marido”, homem poderoso (o poder do dinheiro), Xica tratava mal seus escravos e, mais ainda, os brancos com quem lidava. Muito cheia de caprichos, exigiu que João lhe construísse uma galera, para que pudesse passear num lago, de propriedade da família, além de viver empoada de branco, para “esconder sua etnia”. Era um tipo exótico de mulher, equivalente a uma “noveau riche” de hoje, trajando-se exuberante e ridiculamente, abusando de joias e perucas.
 
Em 1770, João Fernandes teve de voltar a Portugal, para tratar da herança que lhe deixara o pai, e levou consigo os quatro filhos homens do casal, deixando Xica, no Brasil, com as nove filhas, mulheres. Na peça, ela implora ao marido que a levasse consigo, creio que, por medo de sofrer discriminação e/ou retaliações, longe do seu “protetor”. Xica faleceu em 1796.

 
 
 
            A CHICA de hoje, a da peça, é uma bem-sucedida comerciante, negra, que se apaixona por um homem que, como João Fernandes, também é branco, cuja mãe é profundamente preconceituosa e não admitia o relacionamento entre os dois, até descobrir que a negra não pertencia à classe pobre e que era a mesma pessoa a quem ela destratara, insultara, severamente, quando esteve, uma vez, em sua loja, para tentar trocar um par de sapatos.
            Segundo o “release” da peça, “O espetáculo celebra a força da mulher negra brasileira, com inspiração na história da escrava alforriada, que virou mito nacional”.
            Ainda nos diz o referido “release”: “A força da mulher negra brasileira foi construída a partir de séculos de batalhas, conquistas, decepções e sonhos. O desejo de levar à cena essa impactante trajetória, que inclui discussões sobre gênero, raça e cultura afro, motivou a montagem de “CHICA DA SILVA – O MUSICAL”.
            ALEXANDRE LINO, idealizador e produtor da peça, também justifica esta montagem com as seguintes palavras: “Apesar dos inúmeros avanços que conquistamos, desde o século XVIII, essas mulheres (negras) ainda encontram muita opressão, tanto nos ambientes profissionais quanto em suas relações afetivas”.

 
 

 
SINOPSE:
 
RENATA MIZRAHI criou três planos diferentes.
 
No passado, o musical resgata momentos da biografia da personagem histórica Chica da Silva, escrava alforriada que viveu, durante quinze anos, uma relação estável com o rico contratador de diamantes João Fernandes de Oliveira, com quem teve treze filhos e conquistou uma posição de destaque na conservadora sociedade do século XVIII.
 
No presente, a história de Chica da Silva é representada pela mulher negra, que ocupa espaços relevantes na sociedade, vive um momento especialmente importante de conquistas femininas e sororidade (união de mulheres que compartilham os mesmos ideais e propósitos), mas ainda enfrenta uma série de preconceitos nos âmbitos pessoal e profissional.
 
O terceiro plano é o da imaginação, mostrando a vida como a personagem gostaria que ela fosse, com cenas de uma mulher amada, que jamais sofreu preconceito. Um belo mergulho no universo onírico.
 








Para a dramaturga, RENATA MIZRAHI, “a peça distancia CHICA DA SILVA daquela mulher devoradora de homens, a qual, muitas vezes, é associada, e a aproxima da mulher negra do século XXI, que ainda tem que lidar com injúrias raciais em sua vida cotidiana e, muitas vezes, precisa se ‘embranquecer’ para ser aceita”.

A excelente atriz VILMA MELO, que interpreta a protagonista diz que “Por um lado, é muito prazeroso interpretar uma personagem que já está no imaginário dos brasileiros, que é um ícone, em termos de atitude feminina; por outro, é um desafio desconstruir este mito e criar esse paralelo com essas questões das mulheres contemporâneas, que ainda sofrem muito no dia a dia”.

          Não há como não recomendar o espetáculo, por vários motivos. E o principal deles é a pertinência do tema, muito bem explorado pelo texto de REANATA. É preciso que não se pare de abordá-lo, na esperança de que possamos, um dia, viver numa sociedade igualitária, em todos os sentidos, com as pessoas se amando e se respeitando, como deve ser, longe de qualquer tipo de preconceito, principalmente o racial.

          O elenco do musical não é formado por atores/cantores, à exceção de VILMA MELO e ANA PAULA BLACK, que têm belas vozes, técnica vocal e interpretam as canções de dentro para fora, além de serem donas de um potente registro vocal. Os demais, entretanto, não fazem feio, atuando mais como um coro, afinado e de resultado satisfatório. Quanto ao aspecto da interpretação, todos se saem muito bem, fazendo mais de um personagem, com algumas cenas de destaque.
 


 
 

          Se VILMA temia o desafio de vestir a “chica-que-manda”, deve ficar sabendo que o seu trabalho é magnífico. Nota-as com o quanto de garra e paixão ela se apega à personagem, falando, pela boca desta, o que, certamente, gostaria de dizer como cidadã. Sua sensualidade, em cenas em que tal recurso deve aflorar, também evidencia sua bela presença cênica.

          Trata-se de um espetáculo modesto, para a categoria “musical”, entretanto isso não lhe diminui a qualidade, porque é feito com muito amor e esmero, que podem ser comprovados pelo lindo e delicado cenário, de KARLLA DE LUCA, confeccionado com material barato, mas que provoca um deleite estético, pela criatividade da artista, ao criá-lo.

          O mesmo também pode ser dito com relação aos figurinos, também de KARLLA.

          Na direção musical, a presença de ALEXANDRE ELIAS é garantia de sucesso e bom gosto, com composições especialmente escritas para a peça e o acréscimo de canções conhecidas, como a já referida “Xica da Silva”, de Jorge Bem Jor, e trechos de pontos de umbanda, tudo regado a muita percussão, que faz pessoas (eu, pelo menos) se sacudirem nas poltronas.

           Sem muitas novidades, porque o espetáculo não as comportaria, RENATO MACHADO preparou uma luz muito bonita, que valoriza todas as cenas.



 
 

          A direção, de GILBERTO GAWRONSKI, é criativa e minimalista. Como o palco do CC Correios é muito pequeno, não propriamente projetado para TEATRO, a me ver, o diretor, com sua vasta experiência, além de ótimo ator, que é, soube aproveitar esse pequeno espaço cênico, mantendo os cinco atores, quase que o tempo inteiro, no palco, participando, direta ou indiretamente, de todas as cenas, com gestos e movimentos parcimoniosos. Como todos interpretam mais de um personagem (TOM PIRES, por exemplo, é FERNANDES, o “marido” de XICA, e FERNANDO, o namorado de CHICA, um belo paralelismo criado por RENATA MIZRAHI), uma simples virada para o outro lado pode transformar um personagem em outro. Um breve deslocamento, de um ponto do palco a outro, também.

          O final do espetáculo é bastante emocionante e o espectador sai do teatro leve e muito feliz pelo que viu. No dia em que assisti a ele (e deve ocorrer em todas as sessões) só se ouviam comentários elogiosos, de pessoas emocionadas com o espetáculo.

         Recomendo-o, pois, na certeza de que os que seguirem a minha indicação não terão motivos para arrependimento.

 

 
 

 
FICHA TÉCNICA:
 
Texto: Renata Mizrahi
Pesquisa: Daniel Porto
Direção: Gilberto Gawronski
 
Elenco: Vilma Melo, Ana Paula Black, Antônio Carlos Feio, Luciana Victor e Tom
Pires.
 
Cenário e Figurino: Karlla de Luca
Direção Musical: Alexandre Elias
Iluminação: Renato Machado
Fotos: Janderson Pires
Direção de Produção: Alexandre Lino
Realização: Cineteatro
 


 
 
Aplausos!



 
SERVIÇO:
 
Temporada: De 8 de setembro a 30 de outubro de 2016
Local: Centro Cultural Correios: Rua Visconde de Itaboraí, 20, Centro – Rio de Janeiro
Telefone: (21) 2253-1580
Dias e Horários: De 5ª feira a domingo, às 19h
Valor dos Ingressos: R$20,00 (inteira) e R$10,00 (meia-entrada)
Lotação do Teatro: 200 lugares
Duração: 80 minutos
Classificação Etária: 16 anos
Funcionamento da Bilheteria: Diariamente, das 10h às 19h.
 

 

 




(FOTOS: JANDERSON PIRES.)
 
 
 
 
Com Vilma Melo (Foto: Marisa Sá.)
 
 
 

 
Com Tom Pires (Foto Marisa Sá.)
 






 


 


 



 



 













 




 











 

 

 

 







 




 




 





























 

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